segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Aborto em debate.



Num País extremamente religioso como o Brasil debater a legalização do aborto é praticamente um tabu. Esse estigma social em torno do tema é fruto de um processo histórico de criminalização da mulher, controle da sua reprodução e negação do seu direito ao corpo.
O aborto é um processo que sempre aconteceu ao longo da história com menor ou maior interferência das autoridades. Às vezes tratado com indiferença por estas, noutras sendo proibido ou, até mesmo, obrigatório, o fato é que a intervenção esteve associada à outros interesses que não os das mulheres. Na Grécia antiga, Aristóteles o recomendava como método de controle demográfico, Platão dizia que ele devia ser obrigatório para algumas mulheres por questões eugênicas e Sócrates recomendava que ele fosse facilitado para mulheres que assim o desejassem. Na China, um texto médico do imperador Shen Nung explica como interromper a gravidez. No Cristianismo, apenas em 1869, a igreja católica declara que a alma já era parte do feto desde a concepção e que, portanto, o aborto era crime.
Mesmo que tenha havido interferências de autoridades, o que se sabe é que os métodos abortivos foram usados ininterruptamente, mas que só a partir do séc. XIX é que vão surgir políticas fortes de proibição, dado que a prática do aborto pelas classes populares atrapalharia o fornecimento de mão-de-obra necessária para auxiliar na revolução industrial. Nos períodos pós-guerra, também nota-se um crescimento de políticas restritivas por conta da necessidade de pessoas para o trabalho. Percebe-se aí que a intervenção estatal no caso do aborto tem também interesses classistas.
É notório que os 26% de países do mundo onde o aborto ainda é criminalizado, sejam justamente os países menos desenvolvidos economicamente, em que ainda imperam políticas imperialistas, de busca por mão-de-obra barata por parte das grandes corporações empresariais e, principalmente, onde as mulheres são mais pobres e marginalizas.
Dados da Organização Mundial de Saúde revelam que dos 46 milhões de abortos realizados anualmente, 20 milhões são feitos em condições de clandestinidade. Além de ter como resultado a morte de 80 mil mulheres ao ano, os abortos clandestinos geram uma série de danos à saúde da mulher, que sofrem com infecções, hemorragias, problemas uterinos e com os efeitos tóxicos dos agentes utilizados nos procedimentos inapropriados. Um estudo realizado pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA)[1] em 2010 revela que mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos já fizeram aborto no Brasil, o que nos leva a questionar: Quem não fez ou conhece alguém que já fez um aborto?
Embora o aborto inseguro seja a terceira maior causa de mortalidade materna no Brasil, a população pouco conhece desses números e o debate fica centralizado em idéias religiosas e moralistas que muito questionam o direito à vida do feto, mas que desconsideram o direito à vida e as escolhas da própria mulher, sua condição social, as dificuldades que passa (tanto materiais, em poder fornecer as necessidades básicas, como subjetivas, psicológicas), seus projetos para o futuro; se sofre violência dentro de casa, se sequer desejou uma criança, como se esta tivesse apenas que cumprir um papel tido como natural e obrigatório: o de ser mãe. Idéias que servem como mecanismos de controle, manutenção e reprodução do machismo e da opressão a mulher em sociedade.
A reprodução feminina é um direito individual de escolha, é o direito de cada mulher decidir se quer ou não ter filhos, quantos quer e em que momento da vida. Para tanto, a mulher precisa ter acesso a informações e métodos que possam lhe dar o controle sobre a maternidade e o direito ao seu corpo sem nenhuma forma de imposição. É importante também que este acesso seja gratuito e de qualidade para que mulheres pobres não sejam excluídas do direito ao planejamento de suas vidas.
Afirmar que com a legalização as mulheres vão abortar de forma irresponsável é tratá-las como seres incapazes de tomar decisões, incapazes de poder pensar sozinhas, precisando sempre do tutelamento de um homem, é ignorar ainda uma realidade: que milhares de mulheres morrem todos os dias vítimas de abortos inseguros. O aborto não é uma decisão tomada levianamente, é uma decisão difícil e brutal (para a própria mulher) que precisa ser respeitada. É uma questão de autonomia feminina e de saúde pública. Além disso, os números mostram que em todos os países onde o aborto foi legalizado não ocorreu aumento dessa prática, muito pelo contrario, houve diminuição pelo fato do aborto, ao ser considerado questão de saúde publica e não caso de policia, vir acompanhado de uma eficiente política contraceptiva[2].
É necessário que sejam promovidos debates francos sobre o tema, que tratem da realidade do nosso país, em que de acordo com o Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada dois dias em decorrência de aborto inseguro, a maioria jovens, negras e pobres que não tem dinheiro para pagar um “procedimento” numa clínica, e tem que recorrer a remédios que podem causar sérios danos a saúde, ou aos açougueiros que movimentam a indústria clandestina do aborto. O aborto já é facilitado para as mulheres ricas, pois estas podem pagar por uma cirurgia simples e segura em uma clinica especializada. Já as mulheres pobres têm de se submeter a abortos em condições insalubres, que geralmente resultam em várias complicações, sem poder recorrer ao socorro médico nas redes públicas de forma garantida já que correm o risco de serem punidas legalmente. Desta forma, a criminalização do aborto no Brasil só tem servido para levar à morte milhares de mulheres pobres, que não precisariam morrer se pudessem fazer tal “procedimento” em condições seguras pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Quando se fala em aborto, trata-se a questão apenas como direito ao corpo esquecendo-se de outro ponto importante: a saúde emocional da mulher que é abalada por ela não poder decidir como conduzir sua vida e pelos julgamentos e opressões que sofre quando quer enfrentar os padrões aceitáveis dentro do patriarcalismo. Vale lembrar que a descriminalização, além de livrar a mulher de punição legal e de tratar o aborto como parte do direito à sua saúde reprodutiva, portanto, como questão de saúde pública, ainda ajuda na diminuição da punição moral. Visto que a decisão de abortar é uma decisão difícil para a mulher, tomada apenas em situações extremas, puni-la moralmente torna o processo ainda mais doloroso e prejudicial também à sua saúde emocional.
Ao propor a descriminalização do aborto e das mulheres que decidem fazê-lo, não se pede que as pessoas esqueçam seus valores morais, religiosos e afetivos. Não se trata de um debate religioso ou moral, entre ser a favor ou contra o próprio ato de abortar, mas sim, de ser à favor de que essas mulheres possam ser cuidadas pela sociedade e pelo Estado, que é laico e universal, devendo atender à todas e à todos sem distinção de classe, etnia, crença ou gênero.
Neste artigo procuramos mostrar como a criminalização do aborto afeta mais as mulheres dos países menos desenvolvidos economicamente, incluindo a America Latina e o Caribe. Pensando nessa questão, organizações feministas desde a década de 90 vêm fazendo ações para reivindicar a legalização e descriminalização do aborto, o dia 28 de setembro foi escolhido para ser o dia de mobilização e de visibilidade das ações, é o Dia Latino-Americano pela Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.
É importante que as Ciências Sociais voltem sua atenção a questões polêmicas como essa, que saia do ambiente acadêmico meramente conceitual e produza conhecimento que represente relação direta com os problemas da sociedade, contribuindo com formulações científicas em cima de um tema tão difícil de ser trabalhado.

ENQUANTO ISSO…

Tramitam no Congresso dois projetos de lei que, se aprovados, serão um duro ataque aos direitos das mulheres. Um deles é o Estatuto do Nascituro (PL 478/07) que impedirá a realização de abortos em qualquer situação, inclusive em casos de estupro e anencefalia. O estuprador, se localizado, terá de pagar pensão alimentícia para a criança, criando assim uma aberração: vinculo obrigatório e legalizado entre a mulher e o estuprador. O PL também negligencia o fato de que estupradores deveriam ficar presos e, uma vez presos, não podem pagar pensão, o que faz com que este projeto gere ônus apenas sobre a mulher e o Estado; e o outro é o projeto que defende a obrigatoriedade do cadastramento de gestante no diagnóstico da gravidez (PL 2504/07), obrigando-a a ter sua vida reprodutiva vigiada.
Em Portugal, com a crise do capitalismo, mulheres já perderam uma série de benefícios sociais, como a comparticipação (medida do governo que reduz o custo dos medicamentos) de pílulas anticoncepcionais e das vacinas contra o câncer do útero. É preciso estarmos atentas e atentos para que os direitos conquistados pelo movimento feminista não sejam perdidos!

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